Gosto demais dessa foto (apesar da falta de foco). Da esquerda para a direita, Jake, Ben e Tom. Em comum, jogam no mesmo time de rugby league, o Manly Sea Eagles, além de compartilharem o mesmo sobrenome: Trbojevic.

Sim, os três são irmãos e cresceram em Mona Vale, uma das belas praias daqui das Northern Beaches de Sydney, região onde o clube foi fundado em 1947. Exceto Ben, o promissor caçula, Jake e Tom já são dois consagrados jogadores, não somente do clube, como também do esporte, uma vez que defendem o azul de New South Wales no State of Origin (Jake é o atual capitão) e a seleção australiana.
Ah, embaixo, Martín, meu filho de cinco anos que nasceu no Brasil, ama futebol e praticamente não tira o agasalho do Manly de segunda a quarta, e sábado ou domingo, dependendo da rodada. E é por isso que gosto demais dessa foto. Não por ele estar posando com famosos, mas por ser jogadores do time que ele aprendeu a torcer, que já os vê ao vivo no estádio, reconhece alguns pelo nome e, o que diz muito sobre a Austrália que eu gosto (sim, cada pessoa tem a sua própria Austrália): a imensa simplicidade que resultou nessa chapa.
A Austrália, pra mim, é uma linda e sagrada terra roubada dos povos originários, que esteticamente está presa nos anos 1980 e ocupa o penúltimo bloco do condomínio Ocidente-Norte Global, aquele pequeno mas luxuoso empreendimento constituído por apenas 14% da população mundial, mas que controla 73% da renda e começa no bloco A de América do Norte e C de Canadá, passa pelo bloco E de Europa, salta para os blocos J e S de Japão e Coreia do Sul, e termina no bloco Z de Nova Zelândia. Ao lado dos vizinhos do Z, somos aquele distante e periférico bloco onde encontram-se um parquinho e algumas piscinas.
Abaixo, em vermelho, os principais muros do condomínio.

A estética oitentista, refletida nos mullets, a atual moda por aqui, diz muito sobre como enxergo o país: business in the front, party in the back (ou, aportuguesando, sério na frente, festa atrás), que é o mantra dos mullets.
Aos olhos do mundo, em especial do lado de fora do condomínio Ocidente-Norte Global e, sobretudo, dos países não-anglo-saxões, a Austrália é vista com certa seriedade. Business in the front. Porém, poucas coisas definem melhor o estilo de vida daqui do que a expressão laid-back, ou seja, relaxado, tranquilo, que orgulha muito os australianos. E, não por acaso, a expressão no worries, mate, é a quintessência local e captura o espírito descontraído da colônia. Festa atrás.

Pois bem. Há uns meses publiquei um texto sobre a dificuldade de se criar um filho brasileiro, na Austrália, querendo que ele se mantenha são-paulino. O trabalho diário é árduo mas, ao menos neste momento, a boa fase do Tricolor aliada à tecnologia têm ajudado. Porém, mesmo que eu consiga que ele se torne o mais apaixonado são-paulino da Oceania, a distância além-mar (ou mares, dependendo do voo), faz com que muitas experiências e sentimentos sejam impossíveis de serem vividos.
E é particularmente difícil pra mim, que sempre tive no meu amor pelo São Paulo um ponto de conexão extremamente forte com o meu pai e com as minhas próprias raízes uruguaias, que se misturam. A começar por PABLO Furlán e Pedro Rocha, dois uruguaios que foram do Peñarol, clube de coração da minha família no Uruguai, para o Tricolor em 1970. Depois Darío Pereyra, que passei a ver no estádio nos primeiros jogos que meu pai me levou ao Morumbi. Sem contar Diego Lugano, que viajamos juntos para o Uruguai em 2005, dias após o São Paulo ter conquistado o trimundial, numa viagem especial pois havia mais de uma década que o meu pai não visitava sua terra natal.
Enfim, o fato é que desde que o Martín nasceu, por sinal, ao lado do Morumbi(s), sempre fiz o máximo para o São Paulo ser parte da vida dele. Mas sem São Paulo e Morumbi(s) por essas bandas, precisei recorrer a um Plano B, que neste ano se materializou no Plano M, de Manly Sea Eagles, o referido time de rugby league fundado em 1947 em Brookvale, aqui nas Northern Beaches.

Me perdoem o trocadilho, mas quem fez a cabeça do Martín foi um boné. Num ordinário dia, retornando da creche, ele me disse que, além de São Paulo, Uruguai e Fluminense (nesta ordem, conforme compartilhei neste texto), ele começou a torcer para o Manly Sea Eagles. Perguntei o motivo, e a resposta foi que um amiguinho ia todos os dias com o boné do time.
Se o meu sobrenome fosse Marçal e eu não tivesse escrúpulos, eu poderia atacar de coach-picareta e dizer que vi nisso uma grande oportunidade e imendar um grande bla bla bla para vender algum produto ou dar algum golpe. Mas não é o caso.
O que ocorreu é que, graças ao modo looping-eterno-repeat das crianças dessa idade, o Martín nos dias seguintes só falava do Manly. Papai, agora torço para o Manly. Quando vai ter jogo? Vamos assistir? Obviamente, isso tudo começou a soar como música aos meus ouvidos e o processo foi natural. Se transmitia em canal aberto, assistíamos ao jogo. Claro que ele não aguentava os 80 minutos, mas ao menos ia se familiarizando. No dia seguinte aos jogos que não víamos, eu mostrava os melhores momentos no celular. E aí nomes como Daly Cherry-Evans, o grande capitão do clube, os irmãos Turbo, Tommy Talau, Jason Saab, Lehi Hopoate e Luke Brooks começavam a conquistar mentes e corações (sim, eu também entrei no modo bordô e branco).

E aí veio a parte mais legal. O estádio. Claro que nenhum estádio do mundo será um Morumbis. Muito menos o que o Morumbi (nesse caso sem o s) sempre representou pra mim. Mas o 4 Pines Park, no mundo pré-naming rights também conhecido como Brookvale Oval, é absolutamente raiz. Uma mistura de Rua Javari, da Mooca, com Mário Alves de Mendonça, de São José do Rio Preto, só que sem alambrado e com ares praianos. Ou seja, cancha perfeita para o Martín iniciar sua trajetória de arquibancada. Principalmente porque o setor leste não passa de um morrinho com grama, onde as famílias basicamente acampam e as crianças ficam soltas enquanto o couro come dentro do campo. Experiência ímpar para um jogo da elite do esporte, que em dia de chuva é praticamente uma versão Patati Patatá do Festival de Woodstock.
Após algumas idas ao estádio, outros amiguinhos da creche começaram a ir conosco. Ou a nos encontrar em algum pub local para assistir aos jogos (com os pais, claro, bebendo suco de maçã com moderação). E aí, uma amiguinha cujo pai torce para o Parramatta Eels, para desespero dele, começou a ir à creche com o agasalho do Manly. O filho do torcedor do Brisbane Broncos idem. O melhor amiguinho do Martín, que só vai de segunda a quarta, também não tirava mais. E as crianças entraram numa obsessão de só irem com o agasalho. Tivemos que negociar com os outros pais, pois é higienicamente inviável usar a mesma peça de roupa todos os dias com a quantidade de vírus, bactérias e meleca verde de nariz que circulam por lá. Questão de saúde pública mesmo. Conseguimos pular às terças e quintas, dia de lavar o agasalho.

Até que num belo dia, a mãe de um desses amiguinhos torcedores enviou uma mensagem para a Luciana com o cartaz acima, que estava fixado em uma pizzaria de Collaroy Plateau, bairro vizinho. Ela perguntou se iríamos. Achamos estranho e absolutamente vago colocar “os “garotos do Manly Sea Eagles”. Estava com muita cara de propaganda enganosa, mas como sabíamos que o Manly não jogaria naquele final de semana, concluímos que poderia, de fato, não se tratar de uma furada histórica.
Chegamos faltando cinco minutos para o horário marcado. A pizzaria não tem lugar para comer, é só pra viagem. Na porta, os três gigantes do Manly, trajando bermuda e casaco de moleton com capuz, conversavam com o dono do estabelecimento, que não continha o sorriso de orelha a orelha. Aos poucos, crianças devidamente fardadas chegavam, quanto mais novas, mais envergonhadas, já os maiores trocavam ideia com os jogadores como se estivessem no recreio. Casais de senhores com cachecol e boné do time também paravam para uma rápida conversa (o termo resenha felizmente não chegou por aqui) e levar uma margherita. Volta e meia, algum moleque jogava uma bola para os jogadores, e eles brincavam. Isso aconteceu com o Martín e o amiguinho , que trocaram alguns passes com os irmãos Turbo e o veloz Lehi Hopoate, que chegou depois. E assim seguiu por mais de uma hora, enquanto o sol se punha do outro lado da cidade, o sorridente pizzaiolo vendia suas redondas e a garotada aproveitava ao máximo aquele momento que jamais esqueceriam.
Evidentemente, não cometo a heresia de cantar com o Martín:
“Toca no Talau que é try, Toca no Talau que é try”
“Saab, Saab, o terror do 4 Pines Park”
“É, Cherry-Evans! É, Cherry-Evans!”
Mas, com o Tricolor e o Morumbi(s) do outro lado do planeta, essa facilidade e simplicidade para seguir o Manly Sea Eagles é um grande conforto.
PS: post em homenagem ao atleta uruguaio Juan Izquierdo (1997-2024).




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