Por motivos até então não revelados, o local não foi em um ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, e sim – e definitivamente não apenas por questões de rima – entre o Pacífico e o Índico, no Triângulo do Outback, região entre Alice Springs, Uluru e o Lago Eyre, o chamado coração espiritual da Austrália.
É público que se tratava de uma noite espetacularmente clara. Do Grande Emu Celestial, silhueta escura formada pelas nuvens de poeira cósmica na Via Láctea que se estende da constelação de Escorpião até o Cruzeiro do Sul, onde podemos ver a cabeça da ave perto da nebulosa Saco de Carvão, desceu a estrela colorida e brilhante.

Diferentemente da tradição ocidental, que conecta estrelas para formar imagens, os diversos povos originários do continente, seguramente os mais longevos praticantes de astronomia do mundo, conectam as áreas escuras da galáxia. E, através delas, identificam figuras que refletem uma compreensão na qual o céu funciona como um calendário e um mapa para a vida terrena.
Para aproximar este relato da obra original, é necessário mencionar que observação semelhante também ocorre no coração do hemisfério sul, na América. Exatamente onde começa a cabeça do emu, algumas culturas indígenas do Brasil enxergam a cabeça de uma ema, ou Guirá Nhandu, como dizem os nativos, cujo corpo se sobrepõe ao do emu em diversos pontos da Via Láctea. Tanto para os povos aborígenes Kamilaroi e Wiradjuri, notórios astrônomos, quanto para o nosso índio Tupi, o Emu Celestial e a Guirá Nhandu, respectivamente, estão ligados à espiritualidade, cerimônias e ciclos naturais, indicando, inclusive, a época certa para coletar os ovos dessas aves (aqui na Terra, não no céu).

Mas voltando ao objeto resplandecente. Sim, de lá descera um índio. Na verdade, o índio. Impávido, apaixonante, tranquilo e, talvez o mais importante, infalível em sua missão de refundar simbolicamente a famigerada civilização.
É difícil precisar o intervalo dos acontecimentos, mas sabe-se que anterior ao episódio acima, o planeta, flertando com um conflito mundial derradeiro, era assolado por uma depressão generalizada. A Humanidade, famosa em diversas rodinhas cósmicas pelo nível de degradação, chegara a uma de suas descidas mais abjetas ao usar a fome como arma, assassinando crianças e mães desesperadas à espera de água, alimento e remédio. Bombas eram lançadas sobre plantas nucleares. Mas o que parecia ser a proximidade do fim, era na verdade a gestação de um novo começo.
O parto, claro, foi uma sangrenta batalha, como muitos de nós testemunhamos, pois enquanto os suspeitos de sempre caíam bombardeando, tarifando, chantageando, ameaçando e explodindo de pager a gasoduto, toda a sujeira que por milênios estava submersa veio à tona. Foi como se tivessem sacudido um velho aquário pela primeira vez, resultando em um tsunami de sordidez, demagogia e hipocrisia não apenas na face de quem acreditava navegar em águas límpidas, como também na vassalagem que mantinha a sujeira submersa. A luz emanada pelo abismo que se rompeu entre retórica e realidade foi tão atroz que as máscaras caíram e não havia mais o quê ou onde se esconder.
“Um dia, quando for seguro, quando não houver desvantagens pessoais em chamar uma coisa pelo que ela é, quando for tarde demais para responsabilizar alguém, todos sempre terão sido contra isso.” — Omar El Akkad
Dizem que este foi o ponto de não retorno dos opressores, ou como profeririam na linguagem popular da resistência, o axé do afoxé.
As nações indígenas sobreviveram, diferentemente das nações indignas, que foram corroídas por dentro e destruídas pela delinquência de seus miseráveis condutores.
E o novo nasceu, conforme seria revelado aos povos.
Honrando os mais antigos cultuadores do céu que havia na Terra, que em oposição a 65 mil anos ininterruptos de observação das estrelas tiveram seus territórios invadidos nos últimos três séculos por sanguinários colonizadores, o índio, após descer no coração espiritual da Austrália, dirigiu-se a leste sobrevoando lentamente os povoados dos Kamilaroi e Wiradjuri e aterrissou em Point Hicks, local do primeiro contato do HM Bark Endeavour, o navio da Marinha Real Britânica comandada pelo tenente James Cook, com os habitantes daquele continente.
Ali, em átomos, palavras, alma, cor, em gesto, em cheiro, em sombra, em luz e em som magnífico, ele devolveu a custódia da terra aos seus ocupantes originais e a rebatizou com o nome conhecido há milênios: Munda Bubal/Tolywiarar. Depois, subiu um pouco mais e determinou que Mount Dromedary voltara a ser Gulaga.

Em tempo: é preciso ser muito europeu para enxergar um dromedário ou um camelo na montanha acima. Os povos aborígenes olham para Gulaga e vêm uma mulher reclinada.
E assim continuou por todos os lugares onde os súditos pararam durante o arrastão de 1770:
Red Point voltou a ser Kembla
Botany Bay -> Kamay
Sydney Harbour -> Warrane
Nobbys Head -> Whibayganba
The Three Brothers -> Dooragan, Booragan & Mooragan
Mount Warning -> Wollumbin
The Glass House -> Mountain Beerwah & Tibrogargan
Fraser Island -> K’gari
Bustard Bay -> Gooragang
Hook Island, Whitsundays -> Ngari
Cleveland Bay -> Thul Garrie Waja
Hinchinbrook Island -> Munamudanamy
Cape Grafton -> Djilibirri
Cape Tribulation -> Kulki
Endeavour River -> Whalumbal Birri
Cape York -> Peninsula Pajinka
E por último, mas não menos simbólico, Possesion Island, terra dos bravos habitantes das Ilhas do Estreito de Torres onde Cook teria fincado uma bandeira e declarado que toda a costa leste australiana era posse do Rei George III – da latitude 38o Sul até aquele local -, voltou a ser Thuined.
Da Austrália, o índio fez o mesmo mundo afora, redimindo populações inteiras que há décadas, séculos e milênios tiveram sua soberania roubada, seus territórios saqueados e suas almas esquartejadas. O feito surpreendeu a todos. Não por ser exótico, mas pelo fato de ter sempre estado oculto quando teria sido o óbvio.




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