É, amigos, mesmo vigiados até o último fio de cabelo, inclusive por tiras à paisana que sentam nos bancos em frente ao hotel fingindo alimentar pombos no melhor estilo Hollywood enquanto nos observam e nos filmam (todos estão sempre ‘falando por vídeo com o celular apontado para o hotel’, coincidência?), tivemos uma, digamos, pequena fuga.
Mas antes, importante voltarmos para uma praça em São Paulo, perto de onde morávamos, onde eu levava o Martín para cochilar no carrinho e respirar um pouco de ar fresco. Foi lá que, numa ensolarada manhã, os cachorros Madalena, Pantufa e Batata brincavam no momento em que o Martinico despertou e foi para o chão. O Batata se aproximou dele, mas o dono, precavido, pois ele mal andava (o Martín, não o Batata), o repreendeu com veemência (o Batata, não o Martín). A partir daquele instante, todo e qualquer cachorro, para o Martín, virou batata.
Passaram-se alguns meses e chegou a hora de iniciarmos o processo de mudança para a Austrália. E se toda mudança de casa, mesmo que na própria cidade, já requer uma certa logística, imaginem para um país tão distante que não por acaso é conhecido como “down under”, país este absolutamente neurótico com suas fronteiras e em tempos de pandemia. Pior: antes de ir para a Austrália, ainda teríamos uma mini-mudança de cidade e – não percamos de vista – tudo isso com uma criança de um ano e quase dez meses que acha que o animal conhecido como cachorro chama-se batata.
Digo isso, pois é importante que em todas as etapas deste processo, seja quando nos mudamos provisoriamente para a casa da sogra em Petrópolis, nas 10 horas no aeroporto de Guarulhos, nas 20 horas no aeroporto do Catar, nas 14 horas de cada perna até chegar na Austrália e nos 14 dias da quarentena antes de voltarmos a ter uma casa para chamar de nossa, é preciso não só manter uma certa rotina alimentar para o Martín, como também o mínimo de identificação com objetos familiares a ele, como livrinhos, carrinhos, elefantinhos e, obviamente, o Batata de pelúcia.
Viajando com seis malas grandes, mais duas de mão, mais duas mochilas e um carrinho de bebê (além do próprio), manter esse time de referências familiares sempre por perto é estratégico. E a gente veio fazendo isso muito bem. Até o fatídico dia 7 da quarentena…
O desafio central de uma quarentena, sob o ponto de vista psicológico, pode ser resumido como a arte de passar o tempo ou de fazer o tempo passar. Filosoficamente falando, passar o tempo é mais passivo, já fazer o tempo passar é uma atitude mais ativa, um pouco mais elegante. Independentemente, há basicamente três categorias de viajantes em quarentena que, na escala do Céu ao Inferno que o confinamento pode se tornar, apresentam as seguintes opções:
- Viajante sozinho (transita entre a transformação pessoal profunda e os perigos de uma deprê sem precedentes)
- Casal (pode ter 14 dias de lua de mel ou 14 dias para o divócio)
- Família (a escala Céu/Inferno neste caso varia de acordo com a quantidade de crianças e as respectivas idades)
No nosso caso, o principal desafio tem sido manter o Martín suficientemente entretido, dentro de uma rotina minimamente funcional (importante lembrar do fator jet lag na primeira semana) para evitar que ele tenha algum tipo de surto e queira desesperadamente sair do quarto do hotel. Esse receio é real, pois ele ainda não tem idade suficiente para compreender com total exatidão do que se trata, mas ao mesmo tempo possui plena consciência de absolutamente tudo o que se passa durante cada dia.
Com isso, tirando as 10 horas que o Martín dorme à noite e as duas de cochilo durante o dia, nas outras 12 horas restantes é preciso estar com ele, seja brincando, alimentando, inventando histórias, olhando a janela, explicando o que está acontecendo, quais são os próximos passos e, principalmente, reforçando o grande prêmio, que é a nossa liberdade no dia 14. Para isso, nada melhor do que ao final de cada dia riscarmos mais um dos 14 pauzinhos que desenhamos na parede.
E a grande armadilha dessas 12 horas acordadas é algo tão simples, mas tão simples, que é de uma complexidade enorme alcançar: estar 100% com a cabeça no presente.
(ENTER)
(ENTER)
Apertei duas vezes o ENTER para dar tempo para assimilarmos o conceito.
Pensar no passado ou no futuro, num contexto de quarentena, são atividades cerebrais que podem gerar sentimentos como angústia, ansiedade, preocupação, nervosismo, enfim, sensações de desconforto, especialmente por termos pouquíssima margem de manobra aqui dentro e por sabermos que não há como sair daqui até o dia 14. Sem contar que duram pouquíssimos minutos e nada contribuem para o avançar das horas.
Por isso, mais do que passar o tempo ou fazer o tempo passar, o real estado da arte numa situação de confinamento como essa, sobretudo com filho pequeno, quando não é possível leituras, filmes, entrevistas no YouTube, seriados etc, é mergulhar de corpo e alma (não necessariamente nesta ordem) no que está fazendo, em especial nas atividades com o Martín, e viver aquilo da forma mais intensa possível. Juro! O dia avança. E, juro mais uma vez: é muito difícil manter a cabeça 100% no presente por um longo período.
E foi numa dessas tentativas, no dia 7, quando recebemos um telefonema da recepção do hotel dizendo que trocariam as toalhas e as roupas de cama, que vimos no lençol que sairia para a lavanderia um fator novo e logo o transformamos em um barco. Na verdade, na arca de Noé, pois colocamos dentro vários animais, carrinhos e livros do Martín, subimos ele a bordo e, durante um bom tempo, puxando o lençol por uma das pontas (ou proa do lençol – para usar o termo científico) o transportamos pelos espaços possíveis do quarto. Foi uma tarde de sábado épica (para não cometer a heresia de chamá-la de bíblica).
Estávamos tão imersos na brincadeira, com o Martín se divertindo tanto, que perdemos a noção do horário e, quando vimos o relógio, haviam passados 10 minutos do tempo limite de deixar o lençol do lado de fora. Nos assustamos, mas conseguimos colocá-lo a tempo.
Mais tarde, na hora do Martín ir para a cama, percebemos que faltava algo, mas ele estava tão cansado que logo dormiu. No dia seguinte, continuou aquela sensação de algo faltando, de um a menos no time. No cochilo da tarde, o Martín chamou pelo Batata. Olhei no quarto, não o encontrei. Procuramos na sala, nada. Mas falamos para ele dormir que continuaríamos procurando. Foi então que veio o estalo.
Estávamos tão imersos na brincadeira do barco, vivendo intensamente o presente, que perdemos a noção do tempo. E na correria de colocar uma semana de roupas de cama e toalhas para lavar, o Batata, branquinho como o lençol, foi camuflado ao encontro de sua liberdade, passando pelos policiais, soldados e funcionários do hotel, além dos tiras à paisana que fingem alimentar os pombos do lado de fora. Batata, que carinhosamente começamos a chamá-lo de Elvis, has left the building. E era apenas o dia 7 (dos 14) da quarentena…
Em tempo: qualidade da foto está ruim pois é print screen de vídeo.

Leia também:
Volta para a Austrália durante a pandemia – Parte I
Volta para a Austrália durante a pandemia – Parte II: chegada no hotel e quarentena




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