Aeronave no solo, portas em automático, é hora de entrar oficialmente na Austrália, descobrir para qual hotel o governo vai nos mandar e, num nível um pouco mais técnico, tentar entender como funciona a porra toda.

Mas antes, voltemos duas casas.

Independentemente de você ser um residente permanente, cidadão australiano ou o Djokovic vindo disputar o Australian Open de tênis, 14 dias trancafiado num hotel sem poder colocar o nariz no corredor é obrigatório. Esteja você (ou o Djoko) vacinado ou não, vindo de um país que tenha minimamente controlado o vírus ou de um laboratório de coronga a céu aberto como o Bolsonaristão ou o Narendra-Modistão.

Em tempo: somos nós que pagamos ao governo australiano as duas semanas enclausuradas. Um saco, caro, mas tem se mostrado eficaz.

Dito isso, voltamos ao desembarque. No aeroporto fazemos checagem de temperatura, respondemos rápidas perguntas em relação a nossa saúde (tipo um quiz sobre espirros, tosses e melecas) e passamos pelos procedimentos alfandegários de sempre, só que com o aeroporto absolutamente vazio e, na espera das bagagens, já conhecendo todos os 50 passageiros do voo pelo nome.

Malas no carrinho, é a partir daí que a ação começa.

O que antes era conduzido por oficiais do aeroporto e médicos, agora é com polícia e exército. Sim, “SELVA!”. Na saída (obviamente por uma porta lateral), três soldados sentados em uma mesa faziam uma última conferência de documentos, entregavam um saquinho com cerca de dez máscaras e diziam para qual ônibus cada passageiro deveria seguir, enquanto que outros soldados se encarregavam de levar nossas malas para o Corongão (o apelido carinhoso do ônibus).

Apesar do frio de 14 graus que fazia no início da noite de sábado em Sydney, fiz o trajeto de 10 passos até o ônibus número dois em câmera lenta, pois aquele poderia ser o último respiro de ar puro pelos próximos 14 dias.

Até ali, todo o processo havia sido muito profissional e tranquilo, apesar de algumas pequenas aglomerações em filas. Certamente, nenhum Pazuello no comando. Mas a coisa começou a ficar um pouco amadora quando, dentro do ônibus, ouvi o motorista perguntar a um militar como se chegava no hotel.

Conforme o Corongão ganhava as ruas de Sydney, o coração batia mais forte. Não só pela emoção de estar de volta à cidade onde morei por cinco anos e meio – e desta vez escoltado por batedores da polícia (sim, grandes motocas tipo Chips 3.0 em volta do Corongão) -, como também pela expectativa sobre a área em que nos colocariam e, principalmente, o hotel. Nos aproximamos do Sheraton, no Hyde Park, e por um momento achei que havíamos tirado a sorte grande da loteria da quarentena, mas o ônibus seguiu em frente, o motorista obviamente errou o caminho e, após algumas voltas desnecessárias, chegamos ao coração de Chinatown, local de muita familiaridade pra mim, pois estudei três anos por aquelas bandas, quando fui o grande campeão do Mundial de Dumplings no verão de 2009.

Antes de descer do ônibus, um policial visivelmente colocado de última hora na função deu algumas instruções sobre a quarentena e, na sequência, leu as mesmas instruções que havia acabado de proferir. O que eram mais 10 minutos para quem viajava há mais de 60 horas e só queria um banho quente e um vaso sanitário que não estivesse voando?

Após um longo check-in, outro milico nos acompanhou no elevador para ter certeza de que não tentaríamos uma última fuga, logo na entrada do corredor um segurança fingia que não estava jogando paciência na sua mesinha e lá fomos para o quarto. No caminho, pacotes deixados em algumas portas com restos de comida e outros restos que preferi não identificar mostravam a seriedade do isolamento. Porta do quarto aberta pelo jovem soldado, home sweet home.

De todos os itens que eu havia pedido nas minhas orações, só não vieram dois: vista para a baía de Sydney e varanda. Porém, só o fato da janela abrir por alguns poucos centímetros e termos acesso a ar puro já valeu por tudo, pois muita gente está em hotéis com janelas que não abrem, ou seja, duas semanas com 24 horas por dia de ar-condicionado.

Também tivemos a sorte de ter quarto e sala separados, uma pequena, mas eficiente, cozinha e, a cereja do bolo igualmente pedida nas orações: banheira para facilitar o banho do Martín e entretê-lo (em quarentena, cada novo minuto passado vale ouro). Além disso, estamos no segundo andar, de frente para uma rua que não passa carros, mas tem muito movimento de pessoas, bicicletas, patinetes, um simpático tram, enfim, entretenimento garantido, principalmente para o Martín.

A comida é providenciada pelo hotel, três refeições ao dia, que são deixadas na porta. O funcionário bate e somos obrigados a esperar 30 segundos antes de abri-la para não termos nenhum contato com ele. Além disso, é preciso usar máscara e esticar apenas o suficiente do braço para alcançar a embalagem e trazê-la para dentro. O mesmo serve para deixar o lixo fora. Colocar o pé no corredor nem pensar, apenas braço e máscara no rosto.

É permitido fazer compras de supermercado, pedir em restaurantes e comprar bebidas online, porém, neste último (e mais importante) item há restrições. Ainda no Brasil, descobrimos que o limite diário era uma garrafa de vinho ou seis garrafas (330ml) ou latas de cerveja. Mais do que isso, ficava retido na recepção e subiria no dia seguinte. Mas, para a nossa grata surpresa, no primeiro dia minha mãe deixou duas botejas de vinho, que subiram juntas, depois mais duas, que também subiram e só quando eu me empolguei e comprei o equivalente a uma caixa de cerveja, que eles deixaram subir “somente” 12, retendo temporariamente a outra metade.

Falando na minha mãe, essa é outra sorte que tivemos, pois estando no segundo andar e de frente para a rua, tanto ela, que chegou a conhecer o Martín no Brasil, quanto a minha irmã, que ainda não o conhece, estão vindo até aqui e conseguem, minimamente, vê-lo da rua e “interagir” através da janela.

Escrevo este texto no dia cinco, ainda faltam nove para sairmos e abraçarmos tudo o que tiver pela frente, de árvore à minha família, porém já fomos agraciados com a única interação humana com o mundo externo permitida no confinamento: o teste do PCR.

Sim, inicialmente seríamos testados nos dias 2 e 12, porém, com a Covid-19 “absolutamente fora de controle no estado de Victoria” (palavras das autoridades locais sobre 63 novos casos), também faremos no dia 7. Eu achei ótimo, pois cria um fato novo para passar o tempo, apesar do Martín também ser obrigado a fazê-lo. Mas ele, desde o início da pandemia, em março de 2020, está tão sedento por contato humano, por amigos, que depois de enfiarem o mesmo cotonete na garganta e no nariz para fazer o teste, toda vez que batem na porta para entregar comida ele abre um sorriso e fala “izame”, “meleca”. Tadinho!

E uma pena que o pequeno Martinico ainda não fala inglês, caso contrário deixaríamos ele atender o telefone que toca diariamente na parte da manhã, sempre durante a soneca dele, com uma enfermeira perguntando se estamos com algum sintomas (o velho quiz sobre espirros, tosses e melecas) e também como está a nossa saúde mental. Por ora, dia 5, com Martín on fire e uma ajudinha de Shiraz e James Squire, tudo tranquilo!

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